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segunda-feira, 17 de junho de 2013

PAUSA - MOACYR SCLIAR


Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu ­se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
—Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém­ feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
— Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher
comazedume na voz.
— Temos muito trabalho no escritório — disse o marido,
secamente.
Ela olhou ossanduíches:
—Por que não vens almoçar?
— Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um
lanche.
A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
—Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve­se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e
entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão,acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pos­ se de pé.
—Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é?Agente...
—Estoucompressa,seuRaul!—atalhouSamuel.
— Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. — Estendeu a chave.
Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante.
Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado,olharam ­no com curiosidade:
—Aqui,meu bem!—uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda ­roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem,deu cor da e colocou ­o na mesinha de cabeceira. Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; comum suspiro,tirouo casaco eossapatos,afrouxouagravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no
papel de embrulho,deitou ­se e fechou os olhos. Dormir. Em pouco, dormia.Lá embaixo,acidade começava a mover ­se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos. Um raio de sol filtrou ­se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. Samuel dormia;sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia ­se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou­- se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá- ­lo com a lança. Esvaindo ­se em sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois,silêncio. Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-­se.Vestiu-­se rapidamente e saiu. Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
—Já vai,seu Isidoro?
— Já — disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
—Até domingo que vem, seu Isidoro—disse o gerente.
—Não sei se virei—respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
— O senhor diz isto, mas volta sempre — observou o homem, rindo. Samuel saiu.
Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa."
SCLIAR, Moacyr.In:BOSI,Alfredo.Oconto brasileiro contemporâneo.
SãoPaulo: Cutrix,1997

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